Atitude Feminina

Num domingo recente, a rapper Hellen chegou a São Sebastião e encontrou um corpo abatido a tiros, no chão. Ela vinha de show do Atitude Feminina, em Formosa (GO), e ficou em choque ao reconhecer o rapaz que dias atrás lhe pedira a gravação de Enterro do Neguinho, uma das canções marcantes do grupo de rap que narra o velório de malandro, respeitado nas quebradas e sucumbido pelo crime. O assassinato do chegado doeu na garota de 20 anos, que cresceu vendo amigos caírem mortos por envolvimento com o tráfico e com a criminalidade. "Se eu contar nos dedos os conhecidos que perdi, ainda faltam mãos."

Se depender de Hellen, a violência cotidiana que abate a cidade de São Sebastião deixa de ser invisível ao mundo. Ao lado das amigas Aninha, Jane Veneno e Giza Black, ela acaba de quebrar o silêncio com Rosas, primeiro álbum do Atitude Feminina. No disco, elevam as vozes para falar da “quebrada cabulosa que o governo esqueceu”. Gritam para anunciar a existência da “terra de rocha” que comparam à Cidade de Deus, “onde o ferro é brinquedo nas mãos de pivete, onde quem mata mais é o herói dos moleques”.
Cantam histórias com a verdade de quem cresceu em risco. Giza Black, 21, perdeu um irmão de 17 e o namorado de 18. Foram mais dois jovens assassinados perto de casa. Não conseguia tocar no assunto. Tornou-se quase muda, só teve coragem de desatar o trauma que tirou a sua expressão quando dominou a levada do rap. Ali, clama: “Só vejo funerais e ninguém lutando pela paz”. Foi curada pelo hip hop. Hellen, Aninha, 24, e Jane Veneno, 20, viram a violência eclodir dentro de casa. Brigas, alcoolismo, sofrimento. A dor da mãe, agredida por palavras e, por vezes, por gestos, virou música que circula pela internet e deu ao grupo o reconhecimento de melhor demo feminina no Hutúz, a mais importante premiação do hip hop brasileiro. Rosas virou hino contra a violência à mulher. “Tocou meu pai. Ao ouvir, ele admitiu que, se o tempo voltasse, não teria colocado uma gota de álcool na boca. Percebi que valeu a pena pegar esse caminho”, lembra Aninha.

Orgulhosas, as quatro meninas de São Sebastião acabam de parir um disco comovente. Narrativa que pode até incomodar quem vive alheio a um Distrito Federal maculado pela falta de oportunidade. Mas necessária para compreender a geografia das diferenças sociais entre a Brasília de PIB europeu e as cidades de vergonhoso IDH que a cercam. “Em São Sebastião, a brincadeira, pode perguntar a qualquer um, é pular os muros da mansão do Lago Sul”, avisam no disco. “A juventude não tem o que fazer. A mente fica vazia, não há emprego, poucos se seguram no estudo. A violência está em todo lugar, dentro de casa, nas quadras em que você não pode entrar por conta das brigas de gangues. Faltam lazer e esporte. Aí, vêm as drogas, o álcool, a violência policial, o preconceito. Qualquer um que aparece morto é tachado imediatamente de traficante e bandido”, lamenta Jane Veneno. “Nossa realidade não é cor-de-rosa. Precisamos cantar a nossa verdade, e isso mexe conosco. Choramos ao interpretar algumas canções”, completa Aninha.

Luta diária

Rosas põe em evidência a luta do Atitude Feminina para sobreviver num país que despreza e marginaliza os sons de periferia. Sucesso no DF, tocando nas rádios comunitárias do Gama a Brazlândia, da Rodoviária do Plano Piloto à Feira do Paraguai, elas batalham para continuar firmes no rap. Giza e Hellen são mães solteiras que trabalham fora da música para educar os filhos. Giza é repositora de uma loja de sapatos no Lago Sul. Bate ponto de segunda a sábado, das 8h às 18h. Por conta da carga horária, não pode acompanhar o grupo nos shows de final de semana. Nunca conversou com a patroa para liberá-la. Teme sofrer preconceito por ser do rap. A filha Ediele, 2, fica com a mãe. Hellen é faturista de um hospital no Plano, pega das 8h às 18h, de segunda a sexta. O filho Kevim, 4, passa as manhãs na creche e as tardes na escola. “Com os shows do Atitude Feminina, digamos que elas conseguem comprar alguns pacotes de fralda que as crianças precisam”, observa Aninha.

Jane Veneno é dona-de-casa. Com o marido, Wty, compõe a maioria das rimas do Atitude Feminina. Como guerreiros, lutam para viver do rap. É difícil, mas conseguem com dignidade sustentar e educar Jâinna, 3. Casada com o DJ e produtor Raffa Santoro, Aninha trabalha de 15 em 15 dias em projeto da prefeitura de Boa Vista (RR). Faz palestras sobre violência contra a mulher, ajuda o marido no estúdio e assumiu o lado empresarial e de divulgação do Atitude Feminina. É a única que se mudou de São Sebastião.
No palco, as quatro assumem as levadas do rap. Aninha tem formação de coral cristão de igreja católica. Faz a voz que suaviza as canções. Jane Veneno imprime velocidade às rimas com pegada possante. Giza Black e Hellen têm personalidades graves distintas. Juntas, criam as canções, dão palpites sobre as bases, os refrões. São amigas de escola, brigam e se adoram. Estão juntas desde 2000. Para subir no palco e calar “os comédias”, tiveram de enfrentar até humilhações. Perderam as contas de shows em que tomaram cano. Ou das vezes que, como astros, sacudiram a galera, mas tiveram de amanhecer o dia nas paradas, esperando a van para voltar para casa.


Hoje, são respeitadas no movimento. Tem mano querendo autógrafo, foto e disco. Outros reúnem-se em três comunidades no Orkut para falar bem delas. No ano passado, fizeram 100 shows. Em 2006, foram para a Bahia, Goiás e Minas Gerais. Mal o disco saiu e está cotado no Hutúz 2006. “Somos votadas no site (www.hutuz.com.br) em Revelação, Videoclipe e Música”, comemora Aninha. Em São Sebastião, não são prestigiadas pelas autoridades. Fizeram um único show na festa da cidade. Em palco improvisado, correndo atrás de tudo. “Eles não valorizam o rap da cidade”, diz Aninha. Elas devolvem em música: “Um dia, vamos ter paz então/ Vale a pena esperar/ E de que vale o crime, irmão, se ele vem te matar?”. Rosas, o disco, é mesmo uma declaração desesperada de amor à nossa Cidade de Deus.

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1 comentários:

Unknown disse...

Curto demais Atitude Femina , a voz da verdade,espero que voçê fique sempre colocando postagem de Rap Nacional.

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